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O Traço dos Sopros, 2025

Casa de Cultura Laura Alvim | RJ

Exposição Individual - acrílica sobre tela

O traço dos sopros - texto

Texto curatorial por Marcello Dantas

Há, no trabalho de Esther Bonder, uma linha quase imperceptível — tênue como paina, firme como rastro — que liga a paisagem interior ao mundo vegetal. Quando o olhar se demora numa folha, num caule, num brilho de pólen, as formas deixam de ser contornos e passam a palpitar em animações mínimas. É o instante em que a natureza se revela como cinema microscópico: abstrações que respiram, cores que latejam. A exposição se organiza nesse compasso, como um pulsar cromático: do quase silêncio dos verdes sombreados ao estalo solar dos amarelos, o espaço inteiro respira por ciclos, organizados de forma abstrata por um curador daltônico.


Sopro é energia sagrada. Aqui, o sopro não é só metáfora; é matéria e método. Ao esvaziar os pulmões, o visitante percebe que o ar, que parecia plano, tem relevo e direção. O gesto de “ar — esvaziar seu pulmão” torna-se um convite à presença: desacelerar, ajustar a escuta, aprender a escutar os invisíveis e a ver os inaudíveis. O desenho, em Bonder, não é linha sobre superfície; é o traço do sopro, o contorno que o vento deposita na pele das plantas, nas águas paradas, no pólen que encontra abrigo na dobra do tecido.


Por isso as plantas extrapolam as telas. Elas invadem o espaço como quem reclama o direito à sua própria dramaturgia. Ramas, fibras, palhas, paina da cana —fiapos de leveza que flutuam e ornamentam — compõem um adorno que não é ornamento supérfluo, mas pacto de convivência. Uma flor viva, plantada, presente durante todo o período da exposição, sustenta a temporalidade do trabalho: não se trata de fixar um instante, mas de acompanhar o seu reflorescer, com as variações e cuidados que o vivo exige.
 

No ar, a presença de abelhas — concreta ou evocada em vibrações, perfumes, imagens e sons — pauta a narrativa. Naina, uma saudação indiana para o olhar ressoa como uma oferenda, reconhecendo a dança entre sexualidade e fertilidade que funda a vida das flores e de seus agentes. Abelhas deixam rastros: trilhas de pólen, geometrias de  voo, zumbidos que redesenham a sala. Uma caixa de abelhas — real, ficcional ou acústica — condensa essa coreografia coletiva, lembrando que não há flor sem risco, nem colheita sem reciprocidade.


“Florescer é morrer?” A pergunta atravessa a mostra como fio crítico. Cada flor carrega a promessa da semente, mas também o esgotamento de uma forma. O ciclo é o conteúdo. A vida é um sopro, e no seu intervalo cabem latência e silencio. O sopro como latência aparece no que ainda não se vê — botões que preparam cor, água que sobe invisível, forças que aguardam disparo. O sopro como transitoriedade vibra no que já se desfaz — pétalas que se soltam, cores que se apagam, rastros que mudam de lugar.

A pesquisa sonora ronda esse campo com delicadeza: não se busca “fazer falar” as plantas, mas transduzir oscilações, ritmos e microvibrações em situações que justifiquem a presença da pessoa no espaço. A escuta amplificada revela um mundo contínuo — folhas que rangem, seivas que pressionam, ventos que torcem. É nesse limiar que o corpo do visitante se torna instrumento: a distância do ouvido, o tempo do passo, o fôlego dos pulmões.

 

Há, ainda, um resgate ao revés: não a nostalgia de um passado ideal, mas a disposição de reaprender com o que permanece vivo. O Mundo Nawa, entre tantos mundos indígenas do Brasil, nos ensina que paisagem não é cenário, é parentesco — trama de co-presenças em que o humano é só um elemento entre muitos. Nesse horizonte, adornar é reconhecer a dignidade do outro; reflorescer é reaprendera cooperar; rastro é assinatura compartilhada.

 

No conjunto, O Traço dos Sopros propõe uma ética da atenção. Entre telas, plantas e vibrações, entre abelhas e flores, entre silêncio e ritmo, a exposição desenha um pacto simples e radical: respirar com. Sopro é energia sagrada porque nos devolve à medida do mundo — um mundo que pulsa em cores, ruídos e perfumes, e que nos pede menos domínio e mais escuta.

 

Se a pergunta “florescer é morrer?” nos inquieta, a resposta talvez esteja no próprio percurso: reflorescer é também refazer laços — com o ar, com as abelhas, com as plantas, comas paisagens interiores que nos atravessam e com as abstrações animadas do que nunca vi mas, que, ao fim, nos devolvem àquilo que nunca deixou de respirar em nós. Paina, Naina, Nawa, Flor. O mundo pode ter outra cor.

Marcello Dantas

Curador

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