A Vida Sensível, 2023
Centro Cultural dos Correios | SP
Exposição Individual - acrílica sobre tela















Texto curatorial por Ana Carolina Ralston
“O fim da arte é imitar perfeitamente a natureza. Este princípio elementar é justo, se não esquecermos que imitar a natureza não quer dizer copiá-la, mas sim imitar os seus processos”, disse Fernando Pessoa, em meados dos anos 90, em seus instigantes ensaios sobre a estética, em uma clara referência à máxima do filósofo grego Aristóteles. Mimetizar o esplendor natural e reinterpretá-lo de acordo com nossa própria imagem e semelhança é parte de uma busca incessante a que nos propomos ao habitarmos a Terra. A dança entre a natureza interior e exterior, sua ambivalência e polaridade na experiência da vida é tratada pela filosofia de forma tão ampla quanto subjetiva, como também comenta um dos maiores pensadores indígenas contemporâneos, Ailton Krenak. Para ele, a vida não é algo apenas ao nosso redor, mas um atravessamento de dentro para fora, da verdade que carregamos com a imagem que criamos. Este jogo complexo e sublime é um dos pilares percebidos na obra da artista carioca Esther Bonder e que pulsa agora em A Vida Sensível, individual que se apresenta nos Centro Cultural Correios de São Paulo.
A pintura é o gênero primordial pelo qual Esther expressa sua relação com esses dois mundos, o íntimo e o manifesto. Seja em instalações ou no desenrolar de suas pinceladas, tudo é pintura e tudo é natural, em suas tantas formas de habitar o Planeta. Plantas encontram o linho, tintas reconhecem galhos um dia vivos e “tudo parte de tudo”, como resume o filósofo francês Emanuele Coccia, em seu definitivo A Vida Sensível, publicação que norteia alguns pensamentos atuais da artista e que reverberam de forma pulsante nesta mostra, divida em três momentos complementares.
Em Luz do sol, primeiro terço da exposição, a relação entre a produção pictórica acontece por meio da inebriante condição solar que seres viventes necessitam para existir. A coloração amarelada faz-se presente à percepção do espectador, já que “a luz existe antes do olho e não no seu fundo, o sensível existe antes e indiferentemente da existência de todo o órgão perceptivo”, como explana Coccia. As paisagens aqui reunidas brincam entre o figurativo e o abstrato, com elementos expressionistas. A presença do céu norteia a construção espacial de cada uma das pinturas em pequeno formato.
O verde, o petróleo e os tons arroxeados guiam por sua vez o segundo momento da mostra, intitulado Rios e seus rizomas. Tento a água como fonte vital e ponto secular do espaço, Esther se debruça sobre suas infinitas possibilidades de correr e se aprofundar. Um interessante mergulho proposto vai de encontro às grutas internas que nos propiciam a experiência de desfrutar nossas paisagens exteriores a partir de uma perspectiva interior. Isso nos leva de encontro à famosa pintura Étant donnés (1944-66), de Marcel Duchamp, e suas perspectivas de acessar esses dois mundos em uma única imagem. A vida na dimensão dos sentidos e do sensível é a vida na caverna, como sugestiona Platão.
É com uma série de memórias de sua própria versão vegetal que Esther destrincha o terceiro ato de sua obra. Em Autorretratos naturais, a artista transcende seu estado presente para trabalhar as possibilidades da flora interior. Lembranças do tempo em que somos paisagem define a sala, que reproduz pequenas epifanias de estado experimental e contemplativo. O vermelho que punge nas entranhas dos viventes conduz a atenção dos visitantes de uma pintura a outra, levando-os de volta aos outros cômodos da exposição. Como bem define Coccia, todo o ser vivente pode se definir como aquilo que tem uma relação essencial com a imagem, que preserva a própria imagem de si. É nesse retorno inevitável ao que nos habita de forma vernacular que se trata a imagem do sensível de Esther.
Abril, 2023
Curadora
Ana Carolina Ralston