Ser Ecológico, 2023
Carmo Johnson Projects | SP
Exposição Coletivacrílica sobre tela





Texto curatorial por Ana Carolina Ralston
“Pronto, você assegurou-se finalmente que nunca será
ecológico”, afirma Timothy Morton, entre as últimas
palavras da publicação que dá nome a esta exposição. No
entanto, é justamente aí que percebemos o caminho que
o filósofo e crítico literário inglês nos sugere. Somos seres
simbióticos entrelaçados em outros seres simbióticos.
Nossa microbiota bacteriana está vibrando, estamos
respirando o ar a nossa volta e a evolução silenciosa se
desdobra pelos diversos planos que nos rodeiam. Não
estivemos separados nem por um segundo de outros seres biológicos, tanto dentro quanto fora de nosso corpo.
Sensivelmente, estamos em afinação com tudo que está
acontecendo em nosso mundo. Fato é que nunca
seremos ecológicos; isso porque simplesmente nós somos
ecológicos. A certeza do nosso pertencimento nessa teia
de interconexões sem centro nem contornos nos retira
do papel ativo de nos tornarmos algo em um futuro
próximo ou distante para o inevitável presente a que
pertencemos. As maneiras de habitar esse espaço
vigente e adquirir consciência do que de fato
significamos é amplificada pelas produções artísticas
de Esther Bonder, Hildebranda, Ricardo Cardim,
Tamikuã Txihi e Walmor Corrêa na Carmo Johnson
Projects.
As formas de arte têm muito a nos dizer sobre o meio
ambiente, porque nos fazem questionar a realidade em
que vivemos. E para questionar é necessário estarmos
expostos a distintas visões sobre um mesmo tema. Perceber a malha de interconexão a que estamos todos, sejamos seres animados ou inanimados, implica em realizarmos que somos diferentes, estranhos e estrangeiros, habitando um mesmo mundo. Assim, as visões subsequentes de artistas de diferentes partes do Brasil, com distintos anseios, ideais e ancestralidades, nos fazem ver os caminhos possíveis. Se ecologia é coexistência radical, então precisamos questionar nosso senso do que é real e do que é irreal, do que se pode considerar existente e inexistente, ser e parecer.
As pinturas da carioca Esther Bonder exibidas nesta
mostra falam justamente sobre esse caminho entre o real e o imaginário. Na série “Autorretratos Amazônicos”, a artista mistura seu traço figurativo a memórias vividas na floresta tropical. O título do conjunto de pinturas apresentado nos leva a uma reflexão sobre nossa própria projeção quando retratamos um bioma ou uma experiência ambiental. Os cientistas chamam esse raciocínio de “viés de confirmação”, já alguns filósofos o nomeiam de “círculo hermenêutico” e “estilo fenomenológico”. A forma como interpretamos os dados depende daquilo que queremos encontrar. Assim como, a maneira como nos enxergamos segue do tipo de pessoa que somos.
Assim, a trajetória de Bonder influi diretamente no viés que escolheu para representar pictoricamente. Paisagista de for mação, foi pupila de Burle Marx (1909-1994) e conta que após anos criando arranjos exuberantes, certo dia escutou uma das plantas que cortava gritar de dor. A experiência a levou de volta aos lápis e pincéis e a suas paisagens reais e imaginárias que hoje vibram como janelas em espaços contidos.
As janelas que rompem e nos permitem ver para além
dos lugares que habitamos, ou a que muitas vezes estamos sujeitos, podem ser encontradas na produção
contundente da também carioca Hildebranda. Buracos
criados pela artista na série “Carne Viva” exacerbam
as diversas camadas possíveis que sua obra – e também
nossa própria realidade – possui. Em outro conjunto,
“Dobradura”, a artista reconecta tais suturas, na tentativa de reconstrução da vida e, quem sabe, de um futuro verossímil. Em sua pesquisa, Hildebranda busca no seu forte vínculo com a palavra e na imersão recente em pigmentos naturais a conexão mais direta com o universo ambiental.
Um organismo vivo criado por espécies que habitaram por séculos a terra que hoje se encontra este espaço expositivo é o cerne da obra site specic desenvolvida pelo botânico, paisagista e artista visual paulistano Ricardo Cardim.
Espécies se entrelaçam em formações circulares, recriando os contornos que aconteciam pelas queimadas naturais típicas da Mata Atlântica. Bromélia, imbé, guaimbé, dicorisandra, clúsia lanceolata são algumas das espécies do bioma que surgem tanto na instalação viva como na pintura a óleo apresentada por Cardim.
Destaque, pontua o artista, para o guaimbé, uma planta importante na história da cidade de São Paulo, já que suas raízes eram usadas para amarrar as casas e até os barcos séculos atrás, antes mesmo da invenção dos pregos.
Se ecologia não é distância e sim coexistência, aqui também se desvenda a produção da artista, poeta do povo Pataxó (BA) e liderança da Terra Indígena Jaraguá, Tamikuã Txihi. Em sua obra, Tamikuã oferece a convivência entrelaçada entre humanidade e animalidade. A potência ancestral da onça pintada apresenta-se em muitas de suas pinturas e esculturas como a personificação da força vital. Arte, pra ela, é uma das ferramentas de resistência e reativação da memória dos povos originários que confluíram de forma mais simbiótica com os reinos vegetal e mineral nos últimos milhares de anos.
A verdade é que o que chamamos de natureza monstruoso e mutante, estranhamente estranho até o fundo e em todos os sentidos, como define Morton. E nessa maravilha imprevisível vivem os seres fantásticos e suas possibilidades de existência, como reconhecemos na instigante produção do catarinense Walmor Corrêa.
Fascinado por anatomia desde a escola, quando se apaixonou por dissecações e desenhos de Leonardo Da Vinci, o artista visual nos desperta a divagar por inúmeras possibilidades de vivência. Fantasiar novas espécies biológicas, improváveis dentro do processo evolutivo, que
poderiam ser o resultado de mutações de DNA e de seus simbiontes – o que darwinistas chamariam de “fenótipos estendidos” – resulta em possibilidades de adaptação e, por que não, de talvez sobrevivermos à catástrofe que hoje se revela como a sexta extinção em massa.
A consciência ecológica é também a consciência de consequências não intencionais, mas nem por isso menos graves. Ser contrário ao antropocentrismo não significa que odiamos os humanos e queremos nossa própria extinção. Significa ver como estamos incluídos na
biosfera como um ser entre outros seres.
Curadora
Ana Carolina Ralston